Por que alegria e psicossomática?

A psicossomática pode ser definida como a busca de integração entre corpo, mente e espírito. É uma longa aspiração da humanidade. A alegria é um estado de espírito que permite e integra os vários domínios do self. Por isso, creio que ao alcançarmos uma integração psicossomática, temos como resultado o usufruto alegre da vida, em seus aspectos pequenos, diários, ou grandes. A saúde física é outra consequência desta integração. O blog vai estar aberto a notícias, sugestões e informações sobre todos estes temas. Participe, pergunte, traga suas experiências e problemas. Seja bem-vindo.

sábado, 26 de março de 2011

“É dentro de nós que vive a beleza e não fora de nós” Émile Zola

Refletindo (sobre) a beleza, alegria e criatividade no espelho de D.W.Winicott
                                                                                                   Sérgio A. Belmont
A alegria é um sentimento capaz de ser atribuído ao bebê nos instantes iniciais de sua existência? Ou é mais uma disposição própria que, como a beleza, depende para ser constituída, de integração entre o que é próprio do bebê e o que recebe do meio ambiente, também em um contexto de intersubjetividade?
No início, a alegria pode ser entendida no bebê como atividade e satisfação (Middlemore), atividade/capacidade motora (Winnicott) ou afeto de vitalidade (Stern) e representa o conjunto de atividades corporais que são utilizadas pelo bebê para se comunicar com o meio ambiente, quando se sente atendido em suas necessidades essenciais.
De modo análogo ao que acontece com a beleza, a alegria muitas vezes vai ser nomeada a partir do sentimento que a mãe experimenta em sua relação com seu bebê. Se ela puder desfrutar com alegria, preponderantemente, os momentos e atividades nos quais o bebê, sem se dar conta disto, expressa a sua vitalidade, a alegria nomeada poderá inundar o campo de experiência afetiva que circunscreve a relação dos dois.
Ela pode dizer, por exemplo: “como o meu neném está contente, mamou bastante e está satisfeito”, ou falar “que alegria ver este neném todo limpinho, rindo para a mamãe”, estendendo ao bebê um sentimento que inunda seu coração naquele instante.
Este aspecto que marca o sentimento materno em sua presença não percebida junto do bebê é fundamental, pois muitas vezes a mesma vitalidade pode ser expressa em momentos nos quais, por exemplo, o bebê chora.
Vejamos o que diz Winnicott a este respeito: “Porque o bebê chora? satisfação, dor, raiva e pesar... O que eu estou afirmando resume-se nisso: o choro suscita no bebê uma sensação de que está exercitando os pulmões (satisfação), ou então uma canção de tristeza (pesar). Você poderá achar estranho que eu falasse primeiro de choro de satisfação, quase de prazer, pois qualquer pessoa admitiria que, sempre que um bebê chora, é porque deve estar de algum modo aflito...Temos que reconhecer que o prazer participa do choro como do exercício de qualquer função física.”
Neste ponto Winnicott aborda a questão do prazer ou da alegria da mãe ao lidar com seu bebê, exercendo a nomeação afetiva que vai adquirir função adjetivadora. Ele dizia:
“Divirta-se quando ficar contrariada porque os gritos e o pranto do bebê o impedem de receber o leite que você anseia lhe dar com generosidade...Desfrute de tudo isso para seu próprio prazer,  mas o prazer que você possa extrair do complicado negócio de cuidar de um bebê é vitalmente importante do ponto de vista do bebê. Ele não quer tanto que lhe dêem alimentação correta na hora exata, mas, sobretudo, ser alimentado por alguém que ama alimentar seu próprio bebê...O que ele não pode dispensar é o prazer da mãe que acompanha o ato de vestir ou dar banho a seu bebê. O prazer tem que estar presente nestes atos, ou então tudo que o que fizer é monótono, inútil, e mecânico. Se isto tudo lhe dá prazer, é algo como o raiar do sol para o bebê. (grifo meu)
Se equivalermos a idéia de prazer do texto de Winnicott à alegria, então poderíamos pensar que este sentimento da mãe em seus contatos com o bebê vai ser absorvido por ele, preponderantemente, com a mesma tonalidade afetiva. A alegria da mãe, compartilhada com o bebê, exerce a ação que o faz alegre.
No sentido oposto, lembro um texto de Stern (1998), no qual lembra o significado das interações mãe-bebê, descritas por ele durante um período “que cobre três minutos de cada hora, das aproximadamente novecentas horas do primeiro ano de vida do bebê. Quero mostrar com estes três minutos, como as experiências subjetivas momento-a-momento da mãe e do bebê influenciam e se entrelaçam umas às outras. Para mostrar isso eu complementei meu livro intitulado Diário de um Bebê com este, O nascimento de uma mãe, onde descrevo os sentimentos de Joey, quando ele tinha quatro meses e meio de idade. Imagine que nenhuma das coisas que você vê, toque ou ouça tenha um nome. É assim com Joey. Ele experimenta objetos e eventos principalmente pelas sensações que provocam nele.” (p. 160-161)
Stern (idem) continua mostrando a importância que os sentimentos da mãe, em sua convivência com seu filho tem para ele. Enfoca a importância que a constância, também enfatizada por Winnicott, tem para o bebê em desenvolvimento. Demonstra que existe um amálgama de sensações, afetos e percepções, ao qual vai dar o nome de ‘think-feel’. Lembra que ao atribuir uma expressão lingüística ao bebê chamado Joey, dirá: “Joey ‘pensa-sente’, isso e aquilo.” (p. 162)
Continua dizendo que na idade adulta nós somos em grande medida atrapalhados por palavras e significados que juntamos aos eventos. Assim, nosso sentimento de ser funciona em nível diferente daquele vivido por um bebê como Joey.
Stern descreve uma situação na qual o bebê, acostumado com encontros nos quais sua mãe está quase todas as vezes muito alegre, a encontra em um dia no qual seus sentimentos são predominantemente de frustração e de tristeza. Ele diz: “Eu não sou uma pessoa real neste assunto. Sou uma função – um intermediário, um ‘amaciador-superador’ de problemas. Enquanto pensa isso suas feições se tornam inexpressivas e depois tristes. Ela está de frente para Joey, mas olhando através dele, sem se mover. Ele procura a face conhecida. Ele ‘thinks-feels’: Eu entro no mundo através de seu rosto. Sua face e seus detalhes são o céu, as nuvens e a água. Sua vitalidade e espírito são o ar e a luz. São quase sempre um conjunto de luz e ar em movimento. Mas desta vez, quando eu entro, o mundo está parado e sem vitalidade...Onde ela está? Para onde foi? Estou com medo.Eu sinto essa falta de vitalidade rastejando para dentro de mim. Eu procuro em volta por um ponto de vida para onde escapar.(Stern, idem, p.163)
As idéias que Stern traz com este texto são muito importantes para a compreensão do efeito que a dependência absoluta do bebê das atividades, emoções e sentimentos de quem o cuida têm para seu desenvolvimento. Como nosso espelho tem muitas facetas, vale a pena enfatizar aqui nosso ponto de vista de que a linguagem gramatical compartilhada, que ele dramatiza ao supor disponível ao bebê nesse ponto do desenvolvimento, para nós ainda não está. Os bebês como Joey, podem ser eventualmente inundados por este mundo de sensações estranhas, às quais não estão habituados, sofrendo seu impacto no próprio corpo sensível, sem a intermediação e proteção da linguagem e do símbolo. Os efeitos são mais intensos e devastadores, deixando marcas que, por não serem passíveis de representação e memória, podem resultar em lesões não capazes de nomeação.
Estes conceitos seguem os de autores como Ferenczi,[1] Hans Loewald,[2] citados por mim em trabalhos recentes (Belmont, 2000, 2004), nos quais discuto o quanto as lesões traumáticas ocorrendo nos períodos iniciais do desenvolvimento resultarão no fato de que as próprias fundações ou alicerces do self estão abaladas e, caso o bebê sobreviva fisicamente, terá seu desenvolvimento ulterior comprometido.” Ficarão como ‘buracos negros psicológicos’, enfraquecendo o self, em suas várias expressões, como a vitalidade e a alegria.
Um aspecto de extraordinária importância a respeito das lesões resultantes de desencontros, descompassos e ruturas da continuidade ocorrendo nos primeiros meses do desenvolvimento, é o fato dos bebês, como Joey, em nosso ponto de vista, não poderem atribuir a algo externo a eles o desconforto e o sentimento apocalíptico que os invadem.
René Roussillon (2000) diz a esse respeito: “O que acontece quando a atenção se estende além do que foi historicizado, ...ou seja, o que Freud chama de “pré-história” do sujeito? Como Freud indica em “Construções em análise” (1938), o modo de reminiscência da pré-história do sujeito não é mais de natureza representativa. Neste texto ele evoca a  alucinação ou o retorno alucinatório da experiência. De forma mais geral evocaríamos um modo de “retorno do clivado” que se efetuaria de forma senso-perceptiva-motora...O “arqueólogo” não possui mais, para fazer seu trabalho,  “monumentos” conservados,...só dispõe de fragmentos do processo, “vestígios”, elementos muito mais fragmentados, “descontextualizados”. A natureza  não representativa desses “vestígios” não subjetivados, não permite esperar que o sujeito mesmo os “contextualize”, ele não os percebe como vestígios de uma época pré-histórica. O trabalho de recontextualização é,de fato, um trabalho de “construção”, uma tentativa de colocar em relato ...o que não pôde ter lugar, pois o sujeito estava “retirado da cena”. (grifos e negritos deste autor)
Vemos desse modo que o autor aqui citado vê o trabalho analítico sendo realizado com este tipo de pacientes a partir de experiências primitivas que não encontraram seu lugar na mente, por terem sido violentas demais, atomizando-as, ou terem ocorrido em instante anterior ao desenvolvimento da possibilidade de representação e de memória, como foi discutido ao longo do texto.
Paradoxalmente, o sujeito estava ‘lá’ (no local da experiência), mas ‘retirado da cena’ (Roussillon), ou com o ‘self em diáspora’ (Belmont, 2004), ou seja, incapaz de fazer a ligação entre as experiências traumáticas e os agentes que as perpetraram. Temos aqui outro ponto muito importante discutido por Roussillon no mesmo texto citado, onde lembra Winnicott.
 Antes, vou lembrar o conceito de enactment, dos autores da Intersubjetividade.
Para eles, enactment, “tem seu significado ao concretizar e manter organizações de experiência e está implícito em nosso conceito de caráter como estrutura de um mundo subjetivo. Este conceito, propõe, em particular, que padrões recorrentes de conduta servem para tornar reais (Sandler & Sandler, 1978) as configurações nucleares de self e objeto que constituem o caráter de um sujeito.” (Stolorow & Atwood, 1984)
Segundo o dicionário Merriam- Webster (Tenth Ed.) enactment é “algo como uma lei, ou que tenha sido estabelecido por um ato legal ou autoritário”. (meu grifo)
No viés buscado por este trabalho, estamos no campo de fenômenos clínicos ocorridos na “pré-história” (Freud, 1938) do sujeito, ou no período pré-verbal e pré-genital. Estes fenômenos decorrem então da intensidade, eventualmente extensão, e do momento do desenvolvimento no qual o trauma ocorre e o sujeito, como já foi dito, ainda não tem percepção do Outro e de si mesmo.
 Nas palavras de Roussillon (idem) “Idéias como as de projeção ou de introjeção primitivas não têm, portanto, ...grande sentido se supõem um Eu ali, de pronto, e uma separação eu / não-eu suficientemente nítida. Podemos também compreender o conceito de Winnicott de usurpação (d´empietément). ...Quando o “encontrado” ou o “criado” são distantes demais, quando o “encontrado” é inadequado demais, a criança  não terá outros recursos últimos ...senão o de se “atribuir” a origem do que funciona mal (disfonccionne) na sua relação com o ambiente. Isto é usurpação e se instala um núcleo de culpabilidade ou de mal-estar primário no centro da experiência subjetiva.”
Na nossa abordagem, estes atos aconteceriam em momento de ‘pré-subjetividade’, ou seja, no qual a subjetividade ou sentido de sujeito não estão estabelecidos.
Os atos causadores de trauma, além de incidirem sobre um sujeito em constituição, terem a força de lei autoritária e não poderem ser guardados como representação ou memória, deixam uma sombra de culpabilidade sem nome, vagamente referida ao próprio sujeito, em movimento de ‘aprés coup’. Quero dizer com isso que o sujeito se atribui a culpa por um ato traumático que lhe deixou marcas, do qual não se lembra e que têm características de ‘lei autoritária’. Este tipo de experiência sem nome e com autoria erroneamente auto-atribuída a posteriori, forma um núcleo do sentimento de ser, construído sobre bases de um equívoco essencial e fundante.
A escola da Intersubjetividade e outros autores como Roussillon e Winnicott entendem que o trabalho analítico com pacientes portadores de patologias derivadas do tipo de experiência descrito, necessita de uma abordagem técnica e clínica especiais.
Algo que foi vivido, ou melhor ‘sofrido’, tem que ser incluído na história do sujeito, mas paradoxalmente já estava lá. O analista vai fornecer elementos afetivos e compartilhados, de modo a permitir que passem a fazer parte da narrativa do paciente. Roussillon (idem), vê neste tipo de trabalho que: “A capacidade de poder fazer sentir na transferência, a trazer na transferência tais experiências, vai constituir a chance de que um a posteriori (um aprés - coup) representativo possa, enfim, ter lugar.”
Dentro deste contexto, poderíamos entender e ampliar o sentido das idéias de Emerson e de Ibsen citados nas epígrafes.
Invertendo a primeira poderíamos dizer: a alegria que começou compartilhada vai também poder ser vivida sozinha. O início intersubjetivo da experiência do bebê, quando vivido de modo integrador, estrutura outro importante aspecto do desenvolvimento: a capacidade de estar só, ou a alegria de estar em sua própria companhia, que leva, em seqüência, ao desejo de compartilhá-la com o outro.
Em outro desenvolvimento (traumático) possível, poderíamos dizer: a tristeza imposta ao bebê pelo meio ambiente,vai ter que ser vivida sozinha. A possibilidade de compartilhamento fica prejudicada e o sujeito se vê carregando um sentimento de culpa não localizado, uma desvitalização essencial e uma dificuldade para o estabelecimento de laços.
Em relação à segunda podemos perguntar: teria Emerson, ao colocar na boca de Deus sua reflexão a respeito do antagonismo entre poder e alegria querido nos admoestar para as vicissitudes do primeiro?
Voltando ao início do desenvolvimento do bebê, em estado de dependência absoluta, caso a mãe se embriague de poder, talvez perca de vista a importância fundamental de sua tarefa, que é mais ligada ao ser do que ao fazer. Nesse caso, talvez perca a percepção de que sua criatura já é um ser em movimento, com características, capacidades e limitações que lhe são próprias. O bebê é mais, como dizia Winnicott, “uma organização em marcha”, lembrando que a mãe, caso aceite esta idéia, então “estará livre para se interessar bastante pela observação do que acontece no desenvolvimento do bebê, enquanto desfruta do prazer de reagir às suas necessidades.”
A advertência do provérbio ultrapassa os momentos iniciais do desenvolvimento do sujeito e acompanha os séculos, pois a política e a cultura tendem a serem seduzidas pelo poder, afastando-se da alegria do viver compartilhado e da diferença. É muito difícil ser alegre e natural quando se está vergado sob o jugo do poder, seja ele econômico, sexual, étnico ou cultural.
Entretanto, gostaria de lembrar, a partir do aviso contido no provérbio, que o poder expropria ambos, quem comanda e quem obedece, do usufruto da alegria que a amizade, o amor, a brincadeira e o cuidado com o bebê, que representaria uma soma desses aspectos, trazem. Todos, sem exceção, são em sua essência e natureza, compartilhados.
Termino este trecho com uma pergunta: será que uma das facetas da criatividade poderia ser a busca de conciliar, ao longo da vida, o poder adquirido com o desenvolvimento (capacidades, conhecimento, maturidade, sucesso), com a permanência da alegria?



[1] Ferenczi, S. (1931), Reflexões sobre o trauma, in Sándor Ferenczi, Obras Completas, Vol. IV, Martins Fontes, São Paulo, 1992.
[2] Loewald, H. W. (2000). The Essential Loewald – Collected Papers and Monographs, University Publishing Group, Inc., Maryland, 2000.